Sentimos falta do abraço. De estar com os amigos. Da ida ao cinema. Do café no bar da empresa. Da tarde na praia. Da cerveja ao pôr do sol. Chegamos até a sentir a falta daquele colega de trabalho insuportável que antes preferíamos longe.
O último ano tem vindo cheio de saudades e o grande desafio é aprender a viver com elas, focando a energia na esperança de que melhores dias podem tardar, mas não nos vão falhar.
Isto é tudo muito bonito, mas agora sugiro um exercício mais duro, mesmo que hipotético: fechem os olhos e imaginem que esta novarealidade — confinamento — é a vossanormalidade. Para a grande maioria não passa disso mesmo, um exercício hipotético, porque basta abrir os olhos e está tudo no mesmo sítio.
Mas é a realidade de muitos e de olhos bem abertos.
Eu contextualizo: há 30 anos, depois de um acidente doméstico, passei a deslocar-me numa cadeira de rodas. Tinha 15 anos e, durante os primeiros 10 após o acidente, alguns dos exemplos com que abri este artigo foram aminha realidade.
Vivia numa casa não preparada para me permitir ser autónoma e num prédio do qual era particularmente difícil sair de forma simples.
Por isso não dei tantos abraços, por isso não saí tanto com os meus amigos, por isso não fui tanto ao cinema, e por aí em diante.
A verdade é que, no meio do caos, fui uma privilegiada por estar rodeada dos tantos que diariamente desafiaram aquela espécie de confinamento forçado e que me ajudaram a viver uma adolescência digna desse nome. “Pegamos-te ao colo, descemos-te as escadas, levamos a cadeira e vens connosco.” E eu ia.
Quando me mudei para uma casa adaptada às minhas novas necessidades esta passou a ser uma realidade cada vez mais longínqua. Mas nem por isso me esqueci — ou esqueço — que ainda são muitos os que vivem uma vida inteira em confinamento, mesmo sem que lá fora exista uma pandemia à espreita que os obriga a isolarem-se do mundo.
Alguns dirão que houve evolução, que já muito se fala de acessibilidades, que a sensibilidade para estes assuntos passou a aparecer aqui e ali. Respondo com um “hum…mais ou menos”, que já não é um assunto invisível, é certo, mas que falar não chega, temos de agir.
Conseguem agora imaginar com que dificuldade o fará alguém
que viva numa aldeia esquecida do interior do país,
onde o acesso (a tudo, já agora) escasseia?
Existe uma lei criada com o objetivo de legislar as acessibilidades e, no limite, punir quem não as cumpre. É o Decreto-Lei n.º 163/2006, que chega a definir datas limite para as necessárias adaptações, tanto em locais públicos como privados.
Tinha tudo para funcionar, se quem não as seguisse fosse obrigado a cumprir. “Então e não há quem fiscalize o cumprimento da lei, como em todas as outras?”. Na teoria sim, mas na prática não acontece, por isso, cumprir para quê? Dá trabalho, pode implicar alguns custos, e “se ninguém me obriga, deixa-me estar sossegadinho, pode ser que passe e ninguém me chateie.”
Ainda é assim que muitos pensam, e esta é a verdade que tantos remete para o tal confinamento.
Como é que isto se resolve? Às vezes acho que é como já alguém disse: “inspirando, expirando e não pirando”.
Falando mais a sério, resolve-se melhorando a lei, adaptando-a à realidade, garantindo que é cumprida. Resolve-se encarando as acessibilidades como tema estratégico para a economia. Resolve-se vendo as pessoas com deficiência como cidadãos válidos, contribuintes, que ganham dinheiro e que só o podem gastar se forem criadas as condições necessárias para quecirculem livremente.
Não somos apenas 10 % dos 10 milhões de portugueses, como as estatísticas defendem. Somos mesmo os 10 milhões, porque todos nós iremos passar por um episódio de mobilidade condicionada ao longo da vida. Seja porque partimos uma perna, seja porque precisamos de circular com um carrinho de bebé, ou apenas porque chegamos à idade maior e perdemos algumas das nossas capacidades.
Precisamos de um mundo mais consciente,
mais justo e mais empático.
Um mundo que tratetodos de forma igual e que proporcione a todos as mesmas oportunidades. Um mundo que não confine alguém a quatro paredes, não por um ano, mas por uma vida, apenas porque lá fora falta uma rampa, um elevador ou um WC adaptado.
Quando se queixarem do confinamento — “ai, que chatice ter de estar fechado e limitado na minha liberdade!” — pensem antes no que podem fazer para que esta não seja a realidade da vida de alguém.
Especialista em comunicação há mais de 20 anos, queria ser pivot do Jornal da Noite da SIC, mas acabou por se tornar na Wonder Woman da comunicação do grupo Novabase.
É nos livros que nos encontramos e nos perdemos. Os dias de brisa (ainda) fresca da Primavera empurram-nos para recomeços e com eles, novas páginas e novas palavras.
Vidas Confinadas
Sentimos falta do abraço. De estar com os amigos. Da ida ao cinema. Do café no bar da empresa. Da tarde na praia. Da cerveja ao pôr do sol. Chegamos até a sentir a falta daquele colega de trabalho insuportável que antes preferíamos longe.
O último ano tem vindo cheio de saudades e o grande desafio é aprender a viver com elas, focando a energia na esperança de que melhores dias podem tardar, mas não nos vão falhar.
Isto é tudo muito bonito, mas agora sugiro um exercício mais duro, mesmo que hipotético: fechem os olhos e imaginem que esta nova realidade — confinamento — é a vossa normalidade. Para a grande maioria não passa disso mesmo, um exercício hipotético, porque basta abrir os olhos e está tudo no mesmo sítio.
Mas é a realidade de muitos e de olhos bem abertos.
Eu contextualizo: há 30 anos, depois de um acidente doméstico, passei a deslocar-me numa cadeira de rodas. Tinha 15 anos e, durante os primeiros 10 após o acidente, alguns dos exemplos com que abri este artigo foram a minha realidade.
Vivia numa casa não preparada para me permitir ser autónoma e num prédio do qual era particularmente difícil sair de forma simples.
Por isso não dei tantos abraços, por isso não saí tanto com os meus amigos, por isso não fui tanto ao cinema, e por aí em diante.
A verdade é que, no meio do caos, fui uma privilegiada por estar rodeada dos tantos que diariamente desafiaram aquela espécie de confinamento forçado e que me ajudaram a viver uma adolescência digna desse nome. “Pegamos-te ao colo, descemos-te as escadas, levamos a cadeira e vens connosco.” E eu ia.
Quando me mudei para uma casa adaptada às minhas novas necessidades esta passou a ser uma realidade cada vez mais longínqua. Mas nem por isso me esqueci — ou esqueço — que ainda são muitos os que vivem uma vida inteira em confinamento, mesmo sem que lá fora exista uma pandemia à espreita que os obriga a isolarem-se do mundo.
Alguns dirão que houve evolução, que já muito se fala de acessibilidades, que a sensibilidade para estes assuntos passou a aparecer aqui e ali. Respondo com um “hum…mais ou menos”, que já não é um assunto invisível, é certo, mas que falar não chega, temos de agir.
Nunca mais pude sair de casa sem antes planear cada centímetro que queira percorrer com as rodas da minha cadeira. E vivo numa cidade supostamente evoluída, supostamente desenvolvida. De 1.º mundo (e isto também acompanhado de um “supostamente”).
Conseguem agora imaginar com que dificuldade o fará alguém
que viva numa aldeia esquecida do interior do país,
onde o acesso (a tudo, já agora) escasseia?
Existe uma lei criada com o objetivo de legislar as acessibilidades e, no limite, punir quem não as cumpre. É o Decreto-Lei n.º 163/2006, que chega a definir datas limite para as necessárias adaptações, tanto em locais públicos como privados.
Tinha tudo para funcionar, se quem não as seguisse fosse obrigado a cumprir. “Então e não há quem fiscalize o cumprimento da lei, como em todas as outras?”. Na teoria sim, mas na prática não acontece, por isso, cumprir para quê? Dá trabalho, pode implicar alguns custos, e “se ninguém me obriga, deixa-me estar sossegadinho, pode ser que passe e ninguém me chateie.”
Ainda é assim que muitos pensam, e esta é a verdade que tantos remete para o tal confinamento.
Como é que isto se resolve? Às vezes acho que é como já alguém disse: “inspirando, expirando e não pirando”.
Falando mais a sério, resolve-se melhorando a lei, adaptando-a à realidade, garantindo que é cumprida. Resolve-se encarando as acessibilidades como tema estratégico para a economia. Resolve-se vendo as pessoas com deficiência como cidadãos válidos, contribuintes, que ganham dinheiro e que só o podem gastar se forem criadas as condições necessárias para que circulem livremente.
Não somos apenas 10 % dos 10 milhões de portugueses, como as estatísticas defendem. Somos mesmo os 10 milhões, porque todos nós iremos passar por um episódio de mobilidade condicionada ao longo da vida. Seja porque partimos uma perna, seja porque precisamos de circular com um carrinho de bebé, ou apenas porque chegamos à idade maior e perdemos algumas das nossas capacidades.
Precisamos de um mundo mais consciente,
mais justo e mais empático.
Um mundo que trate todos de forma igual e que proporcione a todos as mesmas oportunidades. Um mundo que não confine alguém a quatro paredes, não por um ano, mas por uma vida, apenas porque lá fora falta uma rampa, um elevador ou um WC adaptado.
Quando se queixarem do confinamento — “ai, que chatice ter de estar fechado e limitado na minha liberdade!” — pensem antes no que podem fazer para que esta não seja a realidade da vida de alguém.
ISOLAMENTO
ACESSIBILIDADE
LIBERDADE
Marta Guimarães Canário
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