A minha filha de um ano conheceu o Pai Natal há duas semanas e, como parece que acontece com a maioria das crianças, odiou o velhote gordo, barbudo e vestido de vermelho.
Parece-me razoável ter medo de um estranho com capacidade para sobreviver 364 dias isolado em temperaturas negativas, dar a volta ao mundo em segundos num trenó voador conduzido por oito animais enormes e com hastes, e que todos os anos celebra, impune e alegremente, o crime de invasão de propriedade privada.
Não me interpretem mal: adoro o Natal, adorei acreditar no Pai Natal quando era pequenina e quero muito que a minha filha se delicie com a magia da época. Até porque este invasor, dizem, não nos vem roubar nada, antes pelo contrário. É aqui que eu, mulher adulta de quase 30 anos, fico com medo do Pai Natal.
De onde vêm estes presentes manifestados por
uma carta enviada sem morada nem selo?
Ao longo dos anos fui respondendo a esta pergunta com diversas racionalizações, umas mais insipientes que outras. A que penso que todos fizemos foi atribuir a identidade do Pai Natal ao meu próprio pai – ou à mãe, à avó, ao avô, ou ao primo em terceiro grau ou a todo o elenco sentado à mesa da Consoada, se formos literais na associação da definição de “Pai Natal” com o significado “aquele que oferece presentes no Natal”.
O Pai Natal é, de facto, aquele que oferece presentes, o que significa que pode ser um agente transformador da sociedade através dos seus atos de consumo.
O melhor Pai Natal considera o impacto social, ambiental, ecológico e político das suas prendas.
O Pai Natal é também o influencer que publica um blog post com 10 ideias de presentes para a sogra; o canal de televisão infantil que transmite uma dezena de anúncios a brinquedos de plástico feitos na China entre os episódios de Super Wings e Patrulha Pata; o criativo da agência de publicidade que escreveu o storyboard do anúncio ao perfume que passa no intervalo do jornal da noite, o diretor de casting que escolheu a Jennifer Lawrence para nos dizer que nada cheira melhor no mundo do que ela própria, a fazer o seu trabalho; é também o hipermercado com descontos fantásticos e promoções “leve 2 pague 1” nos bombons.
O Pai Natal é também a mulher que, numa qualquer fábrica no Bangladesh, coseu as mangas do casaco must-have da estação que pedimos à nossa mãe; e o patrão que lhe paga o ordenado mínimo; e a empresa que desenha telemóveis na Califórnia e os monta na China com obsolescência programada, claro.
O Pai Natal é também o mineiro que extrai lítio debaixo de uma montanha no Chile para alimentar a bateria dos nossos novos gadgets; e o político que aceita que a riqueza natural do seu país seja exportada, quase na totalidade, para um país mais rico que o seu; e os 27 milhões de hectares de terreno ocupado, o orangotango cada vez mais próximo da extinção e os 700 conflitos territoriais entre populações que ficam sem casa para ser possível produzir mais óleo de palma para todos comermos um Ferrero Rocher na noite de Natal.
• O melhor Pai Natal não usa mais recursos do que aqueles que o planeta consegue regenerar, escolhe matérias-primas com menos impacto ambiental e social e opera num modelo de negócio com vista ao desenvolvimento sustentável.
O Pai Natal somos nós, a sociedade de consumo, livro do qual um consumidor inconsciente só lê a capa.
Agora que demos uma vista de olhos ao resto da obra,
quem tem medo do Pai Natal?
É que, o que o Pai Natal nos oferece nem sempre é valor e alegria – quem nunca odiou um presente de Natal que atire a primeira pedra – mas nunca deixa de ser uma responsabilidade.
Cabe-nos a nós, felizes contemplados com tudo e mais do que pedimos ao Pai Natal este ano, garantir que nada se desperdiça, que prolongamos a vida do que agora é nosso e que sabemos descartar-nos do que não nos serve de forma ponderada.
Como? Se já estão no sapatinho, é tarde demais para recusarem os presentes inconvenientes sem serem comparados ao Grinch, mas, logo no dia 26, podem começar a discutir a resposta à pergunta “quem é o Pai Natal?”.
Ambientalista, escritora e oradora para o Desenvolvimento Sustentável, “a minimalista” é consultora para o empreendedorismo e a gestão da mudança em projetos ecológicos. Cofundadora da primeira rede e loja online portuguesa de curadoria sustentável.
Consumo Consciente | Quem tem Medo do Pai Natal?
A minha filha de um ano conheceu o Pai Natal há duas semanas e, como parece que acontece com a maioria das crianças, odiou o velhote gordo, barbudo e vestido de vermelho.
Parece-me razoável ter medo de um estranho com capacidade para sobreviver 364 dias isolado em temperaturas negativas, dar a volta ao mundo em segundos num trenó voador conduzido por oito animais enormes e com hastes, e que todos os anos celebra, impune e alegremente, o crime de invasão de propriedade privada.
Não me interpretem mal: adoro o Natal, adorei acreditar no Pai Natal quando era pequenina e quero muito que a minha filha se delicie com a magia da época. Até porque este invasor, dizem, não nos vem roubar nada, antes pelo contrário. É aqui que eu, mulher adulta de quase 30 anos, fico com medo do Pai Natal.
De onde vêm estes presentes manifestados por
uma carta enviada sem morada nem selo?
Ao longo dos anos fui respondendo a esta pergunta com diversas racionalizações, umas mais insipientes que outras. A que penso que todos fizemos foi atribuir a identidade do Pai Natal ao meu próprio pai – ou à mãe, à avó, ao avô, ou ao primo em terceiro grau ou a todo o elenco sentado à mesa da Consoada, se formos literais na associação da definição de “Pai Natal” com o significado “aquele que oferece presentes no Natal”.
O Pai Natal é, de facto, aquele que oferece presentes, o que significa que pode ser um agente transformador da sociedade através dos seus atos de consumo.
O melhor Pai Natal considera o impacto social, ambiental, ecológico e político das suas prendas.
• O melhor Pai Natal é um consumidor consciente.
O Pai Natal é também o influencer que publica um blog post com 10 ideias de presentes para a sogra; o canal de televisão infantil que transmite uma dezena de anúncios a brinquedos de plástico feitos na China entre os episódios de Super Wings e Patrulha Pata; o criativo da agência de publicidade que escreveu o storyboard do anúncio ao perfume que passa no intervalo do jornal da noite, o diretor de casting que escolheu a Jennifer Lawrence para nos dizer que nada cheira melhor no mundo do que ela própria, a fazer o seu trabalho; é também o hipermercado com descontos fantásticos e promoções “leve 2 pague 1” nos bombons.
• O melhor Pai Natal é transparente e pratica preços justos, não baixos.
O Pai Natal é também a mulher que, numa qualquer fábrica no Bangladesh, coseu as mangas do casaco must-have da estação que pedimos à nossa mãe; e o patrão que lhe paga o ordenado mínimo; e a empresa que desenha telemóveis na Califórnia e os monta na China com obsolescência programada, claro.
• O melhor Pai Natal oferece excelentes condições de trabalho, paga ordenados justos, monitoriza a toxicidade, poluição e desperdício da sua produção e cria presentes de qualidade e duradouros.
O Pai Natal é também o mineiro que extrai lítio debaixo de uma montanha no Chile para alimentar a bateria dos nossos novos gadgets; e o político que aceita que a riqueza natural do seu país seja exportada, quase na totalidade, para um país mais rico que o seu; e os 27 milhões de hectares de terreno ocupado, o orangotango cada vez mais próximo da extinção e os 700 conflitos territoriais entre populações que ficam sem casa para ser possível produzir mais óleo de palma para todos comermos um Ferrero Rocher na noite de Natal.
• O melhor Pai Natal não usa mais recursos do que aqueles que o planeta consegue regenerar, escolhe matérias-primas com menos impacto ambiental e social e opera num modelo de negócio com vista ao desenvolvimento sustentável.
O Pai Natal é este sistema económico linear e capitalista que pressupõe crescimento infinito num planeta com recursos extremamente limitados.
O Pai Natal somos nós, a sociedade de consumo, livro do qual um consumidor inconsciente só lê a capa.
Agora que demos uma vista de olhos ao resto da obra,
quem tem medo do Pai Natal?
É que, o que o Pai Natal nos oferece nem sempre é valor e alegria – quem nunca odiou um presente de Natal que atire a primeira pedra – mas nunca deixa de ser uma responsabilidade.
Cabe-nos a nós, felizes contemplados com tudo e mais do que pedimos ao Pai Natal este ano, garantir que nada se desperdiça, que prolongamos a vida do que agora é nosso e que sabemos descartar-nos do que não nos serve de forma ponderada.
Como? Se já estão no sapatinho, é tarde demais para recusarem os presentes inconvenientes sem serem comparados ao Grinch, mas, logo no dia 26, podem começar a discutir a resposta à pergunta “quem é o Pai Natal?”.
E, para o ano, tentamos ser a melhor versão do Pai Natal outra vez.
CONSCIÊNCIA
ÉTICA
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Joana Guerra Tadeu
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